Em parecer sobre a proposta de emenda à Constituição (PEC) da reforma eleitoral, a deputada Renata Abreu (Podemos-SP) propôs a adoção do chamado "distritão" como novo sistema eleitoral para 2022.
Renata Abreu protocolou o relatório no sistema da Câmara nesta terça-feira (13). Por falta de acordo em relação a mudanças no relatório, porém, o parecer nem chegou a ser lido e a matéria foi retirada de pauta.
Por se tratar de uma proposta que modifica a Constituição, a PEC necessita, para ser aprovada, de três quintos dos votos dos deputados (308) e dos senadores (49).
O distritão já foi votado e rejeitado duas vezes pelo plenário da Câmara dos Deputados, em 2015 e em 2017.
Cientistas políticos entendem que o sistema é o "pior" possível. O modelo, segundo o parecer da relatora, seria uma transição para o distrital misto nas eleições seguintes (leia mais abaixo).
Atualmente, o sistema em vigor é o proporcional, pelo qual as cadeiras de deputados são distribuídas proporcionalmente à quantidade de votos recebidos pelo candidato e pelo partido — ou seja, os votos nas siglas também são considerados no cálculo.
Pelo distritão, são eleitos os candidatos mais votados individualmente, desconsiderando-se os votos nas siglas.
Especialistas entendem que o modelo enfraquece a representatividade dos partidos e favorece a eleição de "celebridades".
Segundo a proposta, para o partido disputar vagas de deputados no modelo do distritão, precisaria alcançar pelo menos 30% do quociente eleitoral. Contudo, segundo especialistas, trata-se de uma barreira "irrisória".
Pelos cálculos de Marcelo Issa, do Transparência Brasil, somente partidos muito pequenos não estariam habilitados — como DC, PPL, PRTB, PSTU e PTC.
Difícil 'coisa pior', diz pesquisador
Para o cientista político Cláudio Couto, professor-adjunto do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getúlio Vargas, o distritão é o "pior" sistema possível.
"Eu acho o distritão o pior sistema imaginável. Acho que é difícil conseguir arranjar uma coisa pior do que isso, não é?", indagou Couto.
Ele aponta pelo menos três razões:
- O modelo "destrói" os partidos políticos, segundo Couto, porque o voto passa a ser "ultrapersonalizado";
- Há tendência de ser desperdiçada uma imensa quantidade de votos, argumentou. "Porque, como só os mais votados são eleitos, todos os votos dados a candidatos que não estão eleitos, eles simplesmente são jogados no lixo. Eles não têm nenhuma importância". Segundo o cientista político, isso vai privilegiar a representação daquelas pessoas que, porventura, escolheram os candidatos mais votados, e vai excluir a possibilidade de se eleger um representante de todo o resto da população;
- Segundo Couto, o modelo privilegia o poder econômico e os mais ricos. "Porque para poder se tornar muito votado individualmente, o candidato tende a precisar de muito dinheiro". A campanha se torna mais cara, de acordo com o pesquisador. Para ele, isso vai privilegiar candidatos muito ricos ou que tenham financiadores muito ricos e celebridades.
"Portanto, eu não vejo qualquer vantagem. Parece que é desastrosa essa decisão, se ela vier a se confirmar", declarou.
Em entrevista ao podcast "O Assunto", o cientista político Jairo Nicolau, da Fundação Getúlio Vargas, classificou como "uma aventura" o sistema apresentado pela relatora. Segundo Nicolau, o sistema sugerido pelo relatório não é adotado em nenhuma democracia relevante no mundo.
"Nós queremos trocar o melhor sistema que nós tivemos pelo pior sistema eleitoral do mundo, não é? Uma aventura, não é?", afirmou Nicolau.
Segundo ele, nenhuma democracia relevante no mundo tem um sistema como esse. "Eu até hoje não consegui ver uma virtude nesse movimento. Nem nas versões de distritão, combinado, misto. Acho que a relatora está um pouco perdida. Ela quer de certa maneira aprovar o distritão e fica fazendo arremedos ali, costuras ali para ver se sai alguma coisa", disse.
O pesquisador afirma que o Brasil terá o melhor sistema desde 1945 com a entrada em vigor das mudanças nas regras aprovadas em 2015.
"Se a gente pensar nas reformas que foram feitas e ainda não entraram em vigor, sobretudo o fim das coligações, combinada com essa medida da cláusula de barreira de 2%, a gente tem um sistema que eu caracterizo como o melhor que a gente já teve desde 1945. É um sistema mais inteligível, de certa maneira restringe a fragmentação partidária e ele enviesa menos a vontade do eleitor como acontecia com as coligações", declarou.
O sistema distrital misto, que seria adotado após o período de transição com o distritão, também é criticado por Jairo Nicolau.
"O que eu ouvi é uma proposta muito estranha, que eles primeiro estabelecem uma cláusula mínima de votos para os partidos e só os candidatos desses partidos poderiam disputar essas cadeiras no distritão", disse Nicolau.
De acordo com o pesquisador, a motivação dos parlamentares para mudar o sistema de eleição proporcional é "quase uma preferência estética".
"‘Já foi a moda do distrital misto, já foi do sistema majoritário distrital do tipo inglês. Já tiveram vários ciclos", disse. "Eles estão respondendo algo sem saber a pergunta que foi feita. Para quê o distritão misto?", questiona o pesquisador.
'Transição' para distrital misto
Segundo a proposta da relatora, o modelo do distritão seria uma "transição" para o distrital misto, que, de acordo com o parecer, seria adotado na Câmara dos Deputados, nas assembleias legislativas e nas câmaras de municípios com mais de 100 mil eleitores nas eleições seguintes a 2022. Nos distritos com menos de 100 mil habitantes, o distritão, segundo o texto, será o modelo permanente.
O distrital misto é defendido pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso. No sistema, o eleitor votaria duas vezes: em um candidato registrado no seu distrito eleitoral e em um candidato integrante da lista do partido.
Por esse sistema, metade das cadeiras será preenchida pelos mais votados no distrito; a outra metade seguirá o sistema proporcional de lista aberta.
Ainda de acordo com o texto, caberá ao TSE definir a divisão de distritos eleitorais com um ano de antecedência da eleição. Para isso, a corte precisará seguir dois critérios, segundo a proposta no relatório da deputada:
- os distritos devem respeitar as fronteiras dos municípios;
- o número de eleitores deve ser equivalente nos distritos, com diferença máxima de 10%.
Os deputados analisam uma PEC apresentada em 2011 que, originalmente, tratava somente da proibição de eleições em data próxima a feriado nacional.
Esta proposta foi escolhida, na prática, para "queimar" uma etapa da tramitação, uma vez que já tinha sido aprovada em 2015 pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Casa.
Para valer nas eleições de 2022, as alterações precisam ser aprovadas com, no mínimo, um ano de antecedência — isto é, até outubro deste ano. Por isso, os parlamentares têm pressa em aprovar as mudanças.
Cláusula de barreira
A proposta também altera as regras da chamada cláusula de barreira. Aprovada em 2017 pelo Congresso, a regra determina que partidos têm que conseguir um número mínimo de votos em deputados federais para terem acesso ao dinheiro do fundo partidário e ao tempo de propaganda no rádio e na TV.
Pela mudança proposta por Renata Abreu, os senadores também são incluídos na conta para o atingimento da cláusula. A mudança favorece partidos como a Rede Sustentabilidade, que tem apenas uma deputada na Câmara e elegeu cinco senadores em 2018.
Outras mudanças
Veja outras mudanças propostas na PEC:
- Fidelidade partidária: a proposta prevê punição de perda de mandato para deputados e vereadores que se desligarem, sem justa causa, do partido pelo qual foram eleitos. A mudança já é prevista hoje, no sistema proporcional, mas como a PEC altera o sistema eleitoral para o majoritário, houve a necessidade de explicitar a exigência da fidelidade partidária;
- Prevê mandatos coletivos;
- Data da posse: a PEC altera a data da posse de governadores e prefeitos (passa a ser 6 de janeiro) e do presidente (passa a ser 5 de janeiro). Hoje, as posses são sempre no primeiro dia de janeiro. A mudança, porém, só valerá a partir de 2025 (para prefeitos) e 2027 (para governadores e presidente);
- Iniciativa popular: a PEC prevê a possibilidade de um projeto de lei ser protocolado por eleitores quando houver, no mínimo, 100 mil assinaturas. Tais projetos tramitarão em regime de prioridade.
- Incorporação de partidos: a proposta prevê que, em processos de fusão de partidos, as sanções aplicadas a partidos incorporados não serão levadas para o partido incorporador.
- Participação feminina: a PEC prevê "peso dois" aos votos dados a mulheres para a Câmara dos Deputados para o cálculo de distribuição dos fundos partidário e eleitoral às siglas, entre 2022 e 2030.
Cota feminina
A proposta também cria uma "cota" de cadeiras para as mulheres na Câmara dos Deputados, nas assembleias legislativas e nas câmaras municipais, num formato escalonado:
- 15% na primeira eleição geral (2022) e municipal (2024);
- 18% na segunda eleição geral (2026) e municipal (2028);
- 22% na terceira eleição geral (2030) e municipal (2032).
Na visão de especialistas, a proposta não traz avanços, uma vez que o percentual de mulheres na Câmara, atualmente, já é de 15%.
Nota técnica do Fórum Fluminense Mais Mulheres na Política afirma que a mudança, na melhor das hipóteses, troca "seis por meia dúzia".
Outra alteração na proposta abre brecha, segundo críticos, para que o repasse de 30% dos recursos do fundo eleitoral não sejam necessariamente gastos com mulheres.
A reserva foi criada em 2018 por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Contudo, pela proposta de Abreu, os partidos serão obrigados a "reservar" no mínimo 30% e, no máximo, 60% para candidaturas de cada sexo.
Isso, segundo especialistas e parlamentares, abre brecha para que os recursos não sejam efetivamente aplicados, como prevê a resolução hoje.
"É preciso ampliar os percentuais para serem mais condizentes com nosso tamanho social, e essa conquista não pode vir acompanhada de retrocesso como o fim das cotas de 30%", diz a deputada Fernanda Melchionna (PSOL-RS).
Outro projeto
Em outra frente, deputados também devem analisar um projeto de lei que faz uma reformulação ampla em toda a legislação partidária e eleitoral. A expectativa é que essa proposta também seja aprovada antes de outubro pelo Congresso.
Sob relatoria da deputada Margarete Coelho (PP-PI), a proposta deve criar um novo Código de Processo Eleitoral, unificando normas hoje "espalhadas" em outras legislações, como a Lei dos Partidos, a Lei das Eleições, o Código Eleitoral e a Lei da Inelegibilidade.
Apesar de ainda não ter sido oficialmente protocolada no sistema da Câmara, uma minuta do relatório tem sido criticada por especialistas, que temem retrocessos, por exemplo, na transparência e na fiscalização das contas partidárias por parte da Justiça Eleitoral.
Entre os pontos polêmicos, estão:
- 'Amarra' a Justiça Eleitoral: pela proposta, a Justiça Eleitoral passaria a fiscalizar apenas dois pontos - se o partido recebeu dinheiro de fontes proibidas o não identificadas e se destinou recursos para cotas obrigatórias nas suas fundações e na participação das mulheres;
- Atraso na análise: a proposta também permite que, em processos de prestação de contas, novos documentos sejam apresentados a qualquer momento pelos partidos. Segundo técnicos da Justiça Eleitoral, isso pode atrasar a análise até a prescrição do processo;
- Bens dos candidatos: o texto também retira a divulgação obrigatória dos bens dos candidatos, o que pode, por exemplo, dificultar o trabalho da imprensa e de entidades da sociedade civil, além de retirar o acesso dos próprios eleitores;
- Contratação de empresas: permite que partidos contratem, com recursos do fundo partidário, empresas privadas para auditar a prestação de contas. Isso, na visão de técnicos, "terceiriza" o trabalho da Justiça Eleitoral, que hoje faz o acompanhamento diretamente, sem intermediários.
A Câmara também discute uma PEC que estabelece o voto impresso nas eleições. A proposta sofre resistência de pelo menos 11 partidos e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), contrários à adoção do voto impresso. Já o presidente Jair Bolsonaro costuma lançar suspeitas de fraude em relação ao voto eletrônico sem nunca ter apresentado provas de qualquer irregularidade.
G1
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